USO
DE NORMA IMPRÓPRIA NAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS
Talden
Farias
É
sabido que na aplicação de sanções administrativas ambientais
muitos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente fazem uso do
Decreto Federal n. 6.514/2008, o qual dispõe sobre o assunto e
estabelece o processo administrativo federal para a apuração dessas
infrações. Esse decreto regulamenta o Capítulo VI da Lei n.
9.605/98, que cuida de tal modalidade de infrações e de sanções.
Nada
parece impedir que um ente estadual ou federal faça uso de uma norma
federal, ainda que se trate de regra infralegal. Com efeito, não há
problema em o Estado ou o Município se servir do decreto federal
desde que haja expressa previsão legal nesse sentido.
No
entanto, não existe a mesma aceitação se esse ente utiliza o
decreto federal quando possui disciplina normativa própria sobre o
assunto. É que nesse caso haveria um choque entre essa norma e a lei
ou o decreto municipal.
Em
princípio seriam duas as situações recorrentes: na primeira o ente
possui norma específica mas só usa a federal, enquanto que na
segunda o ente possui norma específica e ora usa sua norma ora usa a
norma federal. Na prática, contudo, não existe tanta diferença
entre as duas hipóteses, porque em ambos se verifica ao menos a
possibilidade de escolha da ordem jurídica a ser seguida.
Esse
fenômeno, que envolve a um só tempo um conflito de competência
administrativa e legislativa, tornou-se comum com a descentralização
da gestão ambiental iniciado a partir da Resolução n. 237/97 do
CONAMA, e depois aprofundado pela Lei Complementar n. 140/2011. De
fato, é cada vez maior o número de Municípios a desempenhar as
atribuições administrativas nessa matéria, em especial a
fiscalização, as sanções administrativas e o licenciamento.
Impende
dizer que a discussão é de ordem financeira, uma vez que sob o
aspecto formal não existe diferença na aplicação das demais
sanções administrativas ambientais, a exemplo de embargo,
suspensão, demolição etc. Na verdade, o problema todo são as
penas pecuniárias, dado que os valores previstos na legislação
federal são em regra bem mais altos do que os da legislação
estadual ou municipal. Por exemplo, no decreto federal há multas que
chegam a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e a 50.000.000,00
(cinquenta milhões de reais), respectivamente.
Pois
bem. São vários os aspectos a serem observados.
O
primeiro é que não parece coerente que a decisão acerca da norma
aplicável fique a cargo do agente de fiscalização ou mesmo do
gestor do órgão ambiental, já que a esses cabe a execução de
políticas públicas e não a deliberação sobre a espécie
normativa a ser adotada. Todavia, não se trata de uma questão de
razoabilidade ou de juízo de mera conveniência ou oportunidade,
pois as implicações jurídicas são inegáveis.
É
possível constatar o desrespeito à autonomia política dos entes
federativos, valor que foi consagrada pela Constituição Federal de
1988. Se o ente estabeleceu uma norma específica é porque ele quer
que a mesma seja levada consideração, sendo vedado ao fiscal ou a
quem quer que seja passar por cima disso. Não cabe a ele afrontar a
sua própria autonomia, de forma que para escolher um conjunto de
normas de outro ente administrativo ele teria de revogar a sua
própria norma primeiro.
A
separação dos poderes é outro valor fundamental, uma vez que a
opção do Poder Legislativo não pode ser menosprezada pelo Poder
Executivo. A Administração Pública deve aplicar a lei, não sendo
esse um juízo discricionário.
Também
se faz presente o desrespeito ao princípio da legalidade, pois a
laboração da Administração Pública está vinculada ao que
determina a lei. Isso implica dizer que não se pode deixar de
aplicar a lei própria em face de um decreto de outro nível
federativo.
Argumento
de maior relevância, a autonomia política dos entes federativos
justifica a prevalência da norma municipal, seja ela lei ou decreto.
Já a separação dos poderes e o princípio da legalidade dizem
respeito à lei enquanto espécia normativa, independente de ser ela
ordinária ou complementar.
Destarte,
fica evidente que nada justifica a aplicação de um decreto federal
quando o Estado ou o Município dispõem de norma específica sobre o
assunto. Isso é ainda mais evidente quando a temática é
disciplinada diretamente por lei.
Os
entes estaduais e municipais estão mais próximos da população, o
que reclama a aplicação do princípio da subsidiariedade. Logo, a
presunção legal é que as normas desses entes gozam de maior
especialização e legitimidade1.
De
mais a mais, admitir o entendimento contrário significa deixar
margem para o agente público escolher a multa mais leve quando
quiser ser flexíveis ou a mais pesada quando quiser ser rigoroso, o
que abre espaço para injustiças e até para práticas de corrupção.
Não deve ocorrer discricionariedade no ato de multar nem no ato de
decidir qual referência de multa utilizar.
O
que a sociedade espera é que o ente federativo conheça e faça uso
do seu arcabouço normativo. E se houver alguma deficiência da norma
que o próprio ente federativo a atualize e modifique, pois o que não
se pode permitir é a aplicação de norma imprópria nas sanções
administrativas ambientais.
1
AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE
LICENÇA AMBIENTAL. MULTA. LEI ESTADUAL DE PERNAMBUCO.
CORRESPONDENTE AO VALOR DA LICENÇA. AGRAVO NÃO PROVIDO. -
Preliminar de ilegitimidade ativa não provida. Conquanto o auto de
infração ter sido assinado por representante da empresa, a
tipificação da infração é dirigida a esta, motivo pelo qual é
parte legítima para propor a presente demanda. - A questão de
mérito a ser analisada neste agravo diz respeito à norma legal
aplicável à quantificação de multa ambiental aplicada pelo
IBAMA, não integrando o objeto da discussão o cabimento de citada
penalidade. - A empresa demandante foi multada por funcionar sem a
devida licença ambiental, já que sua atividade (fabricação de
gesso) é potencialmente poluidora (art. 66, Decreto 6.514/08). - A
Constituição Federal determina que em relação à proteção do
meio ambiente legislam concorrente a União, os Estados e o Distrito
Federal. Os Estados poderão exercer competência legislativa plena
quando inerte a União, mas devendo se adequar a uma superveniente
norma federal. Ainda no âmbito da competência legislativa
concorrente, a União deverá estabelecer normas gerais, enquanto os
Estados poderão suplementá-las, ou seja, poderão instituir normas
específicas, a fim de adequá-las a realidade regional ou para
preencher uma lacuna da legislação federal. - Agiu bem o
magistrado a
quo
ao aplicar, no caso dos autos, Lei do Estado de Pernambuco (nº
12.916/05) que determina de forma um pouco mais específica o valor
de multa aplicável aos casos de falta de licenciamento ambiental. -
O Decreto federal 6.514/08 determina o valor mínimo e máximo de
multa aplicável para os casos de funcionamento de estabelecimento
sem a devida licença ambiental entre R$ 500,00 (quinhentos reais) e
10.000.000,00 (dez milhões de reais). Por sua vez, a Lei Estadual
estipula três faixas de valores por tipo de infração (infrações
leves, graves e gravíssimas), incluindo valor específico para a
falta de licenciamento ambiental, motivo pelo qual não há que se
falar de incompatibilidade entre as normas federal e estadual.
Ressalva deve ser feita apenas quanto ao valor mínimo aplicável às
infrações leves que deverá ser de R$ 500,00 (quinhentos reais) e
não de R$ 50,00 (cinquenta reais) como estabelecido pela lei
estadual. - Agravo de instrumento não provido. (TRF-5
- AGTR: 103813 PE 0127677-22.2009.4.05.0000, Relator: Desembargador
Federal Paulo Gadelha, Data de Julgamento: 27/04/2010, Segunda
Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça Eletrônico
- Data: 13/05/2010 - Página: 426 - Ano: 2010).
MULTA
AMBIENTAL. Capital. Ação anulatória e repetição do indébito.
Poda sem autorização de árvore situada em residência. LM nº
10.365/87. LF nº 9.605/98. DF nº 6.514/08, art. 72. Dupla
autuação. 1. Poda de árvore. LM nº 10.365/87. A LM nº
10.365/87, de natureza ambiental, regula a supressão e poda da
vegetação arbórea no município de São Paulo; estabelece
procedimentos e sanciona a conduta indevida. A lei local prevalece
sobre a LF nº 9.605/98 e DF nº 6.514/08, ante o critério da
especialidade. Inviabilidade de a administração sancionar aplicar
duas multas baseadas nas duas leis, em inaceitável 'bis in idem'.
2. Poda de árvore. LF nº 9.605/98 e DF nº 6.514/08. Ainda que se
admitisse a aplicação da lei federal, a mesma especialidade
implica no enquadramento da conduta no art. 56 do regulamento
(infrações contra a flora), não no art. 72 (infrações contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural). Revogação da
Resolução CADES nº 124/08, que assim determinava, pela Resolução
CADES nº 154/13. Nulidade da multa aplicada pela Secretaria do
Verde e do Meio Ambiente e da inscrição da dívida. 3.
Restituição. O
município deve restituir ao autor o valor da multa e despesas por
ele recolhidos ao erário para evitar o prosseguimento da cobrança.
Improcedência. Recurso do autor provido. (…) Poda de árvore.
Tipificação. A peculiaridade do caso recomenda
o prosseguimento da análise. O juiz pode adaptar o direito (o
enquadramento legal) ao fato, se demonstrado; poder-se-ia então
manter a autuação lavrada pela Secretaria do Verde e do Meio
Ambiente, mas enquadrada a conduta no art. 56 do DF nº 6.514/98 e
reduzida a multa ao ali previsto. /A questão não é tão simples.
A LM nº 10.365/87 não é uma lei de simples posturas municipais ou
de uso do solo urbano, mas uma lei
de proteção ambiental do município; e se a questão foi
regulamentada no município,
não há razão para que o próprio município aplique as sanções
previstas na lei federal. A competência para autuar, se a
Subprefeitura (aplicação da lei municipal) ou se a Secretaria do
Verde e do Meio Ambiente (aplicação da lei federal), é
irrelevante; não se admite a dupla sanção pelo mesmo fato nem a
aplicação da lei geral se a lei local disciplina exata e
especificamente a conduta praticada. Isso leva à conclusão, aqui
formulada 'orbiter dicta', de que sequer a conclusão a que chegou o
CADES na 150ª Reunião está correta; pois cabe à Prefeitura
aplicar a sanção prevista na LM nº 10.365/87 e não, perpetuando
a dualidade, aquela prevista no art. 56 do DF nº 6.514/08. Não são
leis que regulem coisas diferentes, o direito de construir e o dever
de preservar; são leis que regulam a mesma coisa, a proteção à
flora urbana e a necessidade de prévia licença municipal para a
poda ou supressão da vegetação arbórea./Daí a conclusão de que
as autuações lavradas pela Secretaria Municipal são nulas por
erro de enquadramento e pela inaplicação da legislação citada; e
porque a conduta foi sancionada pela própria administração da
forma correta. (TJ/SP
- Apelação n. 0055353-46.2012.8.26.0053, Relator: Desembargador
Ricardo Cintra Torres de Carvalho - 1ª Câmara Reservada ao Meio
Ambiente - Julgamento: 02/10/2014).
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