IMPOSSIBILIDADE
DE DIMINUIÇÃO DE ÁREA OU DE NÍVEL DE PROTEÇÃO DE UNIDADE DE
CONSERVAÇÃO VIA MEDIDA PROVISÓRIA
Talden
Farias
Causou
polêmica a atuação da Comissão Mista do Congresso Nacional, que
no dia 12 de dezembro de 2018 aprovou a alteração e a diminuição
de áreas de Unidades de Conservação, devendo o projeto de lei
agora seguir para a votação no Plenário da Câmara dos Deputados.
Cuida-se da modificação da poligonal do Parque Nacional de Brasília
(Água Mineral) e da Floresta Nacional de Brasília, no Distrito
Federal, além da redução do Parque Nacional de São Joaquim, no
Estado de Santa Catarina.
É
claro que a primeira crítica a ser levantada diz respeito à
inclusão de novos temas, uma vez que a matéria original não
versava sobre o assunto. De fato, originalmente a Medida Provisória
n. 852/2018 dispunha sobre a transferência de imóveis do Fundo do
Regime Geral de Previdência Social para a União, sobre a
administração, a alienação e a gestão dos imóveis da extinta
Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, extingue o Fundo
Contingente da Extinta RFFSA – FC e dispõe sobre a gestão dos
imóveis da União.
Contudo,
existem outras questões que também podem ser levantadas no que
concerne a esses espaços territoriais ecologicamente protegidos,
especialmente levando em consideração o olhar do Direito Ambiental.
Pois bem, o primeiro e mais óbvio questionamento diz respeito à
existência ou não dos requisitos constitucionais de relevância e
urgência, previstos no art. 62 da Constituição Federal de 1988.
Realmente,
ao menos em princípio não parece que a transformação de parte de
uma área protegida em uma área menos protegida ou sem proteção
atenda a tais pressupostos – embora somente a análise das
peculiaridades do caso concreto é que pode permitir tal juízo. No
entanto, o ponto central dessa discussão é mesmo o inciso III do §
1º do art. 225 da Lei Fundamental, segundo o qual somente lei pode
suprimir espaços territoriais ecologicamente protegidos:
Art. 225. Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar
a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
III - definir, em
todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção.
A
discussão acalorada é inevitável, pois se trata de mais um
capítulo do velho e inesgotável embate entre ambientalistas e
ruralistas, o que tende a se acentuar cada vez mais aqui no Brasil.
Enquanto aqueles querem ampliar e consolidar as áreas protegidas,
estes lutam por mais áreas para o desenvolvimento de atividades
agropecuárias.
Paixões
à parte, resta saber se é possível restringir os chamados espaços
territoriais ecologicamente protegidos fazendo uso de uma medida
provisória. Impende dizer que o debate é relevante porque o
precedente pode fazer com que outros espaços protegidos sejam
diminuídos ou até extintos pela mesma via, inclusive no âmbito dos
demais níveis federativos.
O
desiderato constitucional deixa claro é que é possível instituir
tais espaços por meio de decreto ou até de outro ato normativo, mas
só é possível desfazê-los por meio de lei. Esse entendimento está
de acordo com o caput
do art. 225 da Lei Maior, segundo
o qual “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Essa
é a norma-matriz do Direito Ambiental, a qual deverá fundamentar a
interpretação e a aplicação de todas as demais regras
constitucionais e infraconstitucionais sobre o assunto1.
Tamanha é sua importância que esse dispositivo é apontado como uma
espécie de mãe de todos os direitos ambientais consagrados na
Constituição da República2.
Eis
o caso de aplicação do princípio da reserva legal, segundo o qual
determinado tema só pode ser disciplinado por uma espécie normativa
específica, que no caso é lei em sentido estrito. Por força do
citado princípio constitucional nenhuma outra modalidade normativa
pode dispor sobre o assunto, haja vista a determinação
constitucional.
Isso
implica dizer que o legislador constituinte originário procurou
facilitar a criação de tais espaços, bem como dificultar a sua
desconstituição ou flexibilização. Logo, a restrição guarda
relação tanto com a diminuição quantitativa do espaço físico da
área, o que consistiria na supressão parcial ou total do território
protegido, quanto com a sua diminuição qualitativa, o que
consistiria na manutenção do espaço físico protegido porém com
alteração a menor do nível de proteção.
O
Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto no Agravo
Regimental em Recurso Extraordinário n. 519.778/RN, que teve como
relator o Ministro Luís Roberto Barroso:
(...)
15. A Constituição,
portanto, permite a alteração e até mesmo a supressão de espaços
territoriais especialmente protegidos, desde que por meio de lei
formal, ainda que a referida proteção tenha sido conferida por ato
infralegal. Trata-se de um mecanismo de reforço institucional da
proteção ao meio ambiente, já que retira da discricionariedade do
poder executivo a redução dos espaços ambientalmente protegidos,
exigindo-se para tanto deliberação parlamentar, sujeita a maior
controle social.
16. Tal arranjo se
justifica em face da absoluta relevância do direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado. A dicção constitucional, que o
considera um ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida’ (art. 225, caput),
reforça o entendimento doutrinário de que se trata de um direito
fundamental, vinculado a um dever de solidariedade de amplitude
inclusive intergeracional, como já assentado pela jurisprudência
deste tribunal.
Há
outros julgados da Suprema Corte brasileira sobre o assunto:
A
Constituição do Brasil atribui ao poder público e à coletividade
o dever de defender um meio ambiente ecologicamente equilibrado
(Constituição do Brasil/1988, art. 225, § 1º, III). A delimitação
dos espaços territoriais protegidos pode ser feita por decreto ou
por lei, sendo
esta imprescindível apenas quando se trate de alteração ou
supressão desses espaços. Precedentes.
[MS
26.064,
rel. min. Eros Grau, j. 17-6-2010, P, DJE
de
6-8-2010.]= RE
417.408 AgR,
rel. min. Dias Toffoli, j. 20-3-2012, 1ª T, DJE
de
26-4-2012.
Os
atos administrativos gozam da presunção de merecimento. (...) A
criação de reserva ambiental faz-se mediante ato administrativo,
surgindo a lei como exigência formal para a alteração ou a
supressão – art. 225, III, do Diploma Maior. (...) Consulta
pública e estudos técnicos. O disposto no § 2º do art. 22 da
Lei 9.985/2000 objetiva identificar
a localização, a dimensão e os limites da área da reserva
ambiental. (...) A implementação do conselho deliberativo gestor de
reserva extrativista ocorre após a edição do decreto versando-a.
[MS
25.284,
rel. min. Marco Aurélio, j. 17-6-2010, P, DJE
de
13-8-2010.]= ADI
4.218 AgR,
rel. min. Luiz Fux, j. 13-12-2012, P, DJE
de 19-2-2013.
Ação
direta de inconstitucionalidade estadual. Lei municipal que altera
regime de ocupação do solo de zona de proteção ambiental. Lei
municipal é a via própria para alteração do regime de ocupação
do solo.
Meio
ambiente. Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225).
Prerrogativa
qualificada por seu caráter de metaindividualidade. Direito de
terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o
postulado da solidariedade. Necessidade de impedir que a transgressão
a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos
intergeneracionais. Espaços territoriais especialmente protegidos
(CF, art. 225, § 1º, III). Alteração e supressão do regime
jurídico a eles pertinente. Medidas sujeitas ao princípio
constitucional da reserva de lei. Supressão de vegetação em área
de preservação permanente. Possibilidade de a administração
pública, cumpridas as exigências legais, autorizar, licenciar ou
permitir obras e/ou atividades nos espaços territoriais protegidos,
desde que respeitada, quanto a estes, a integridade dos atributos
justificadores do regime de proteção especial. Relações entre
economia (CF, art. 3º, II, c/c art. 170, VI) e ecologia (CF, art.
225). Colisão de direitos fundamentais. Critérios de superação
desse estado de tensão entre valores constitucionais relevantes. Os
direitos básicos da pessoa humana e as sucessivas gerações (fases
ou dimensões) de direitos (RTJ
164/158, 160-161). A questão da precedência do direito à
preservação do meio ambiente: uma limitação constitucional
explícita à atividade econômica (CF, art. 170, VI). Decisão não
referendada. Consequente
indeferimento do pedido de medida cautelar. A preservação da
integridade do meio ambiente: expressão constitucional de um direito
fundamental que assiste à generalidade das pessoas.
O
Superior Tribunal de Justiça também já se pronunciou sobre o
assunto no Resp. 1071741/SP, que teve como relator o Ministro Herman
Benjamin:
Ementa: AMBIENTAL.
UNIDADE DE CONSERVAÇÃO DE PROTEÇÃO INTEGRAL (LEI 9.985/00).
OCUPAÇÃO E CONSTRUÇÃO ILEGAL POR PARTICULAR NO PARQUE ESTADUAL
DEJACUPIRANGA. TURBAÇÃO E ESBULHO DE BEM PÚBLICO. DEVER-PODER DE
CONTROLE E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL DO ESTADO. OMISSÃO. ART. 70, §
1º, DA LEI 9.605/1998. DESFORÇO IMEDIATO. ART. 1.210, § 1º, DO
CÓDIGO CIVIL. ARTIGOS 2º, I E V, 3º, IV, 6º E 14, § 1º, DA LEI
6.938/1981 (LEI DA POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE). CONCEITODE
POLUIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DE NATUREZA SOLIDÁRIA,
OBJETIVA, ILIMITADA E DE EXECUÇÃO SUBSIDIÁRIA. LITISCONSÓRCIO
FACULTATIVO (...) NA SUA MISSÃO DE PROTEGER O MEIO AMBIENTE
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO PARA AS PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES,
COMO PATRONO QUE É DA PRESERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO DOS PROCESSOS
ECOLÓGICOS ESSENCIAIS, INCUMBE AO ESTADO DEFINIR, EM TODAS AS
UNIDADES DA FEDERAÇÃO, ESPAÇOS TERRITORIAIS E SEUS COMPONENTES A
SEREM ESPECIALMENTE PROTEGIDOS, SENDO A ALTERAÇÃO E A SUPRESSÃO
PERMITIDAS SOMENTE ATRAVÉS DE LEI, VEDADA QUALQUER UTILIZAÇÃO QUE
COMPROMETA A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS QUE JUSTIFIQUEM SUA PROTEÇÃO
(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 225, § 1º, III).
Aliás,
o próprio Herman Benjamin também doutrina sobre o assunto:
Como
nota Paulo Affonso Leme Machado, autor intelectual deste particular
segmento da Constituição (inspirado na Convenção Africana sobre a
Conservação da Natureza, de 1968), “a norma constitucional não
abriu qualquer exceção à modificação dos espaços territoriais
e, assim, mesmo uma pequena alteração só pode ser feita por lei”.
Nesse ponto, mais do que alterações pontuais ou físicas no
interior de uma Unidade de Conservação, o legislador teve em mente
a modificação de status jurídico, quer pela redução física do
espaço de aplicação do regime especial, quer pela
descaracterização de seus elementos normativos de controle da
fruição3.
O
fato é que somente uma lei formal tem o condão de alterar um espaço
territorial ecologicamente protegido, ou parte dele, para um nível
de proteção menor ou inexistente. Acontece
que a Lei n. 9.985/2000, que regulamenta o art. 225, § 1o,
incisos I, II, III e VII da Carta Magna e institui o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, vai além e exige
que somente
uma lei específica possa desafetar ou desconstituir a área
protegida:
Art.
22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder
Público.
(...)
§
7º. A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de
conservação só pode ser feita mediante lei específica.
Essa
exigência guarda consonância com o art. 225 da Constituição da
República, uma vez que visa dar concretude aos valores plasmados no
caput,
pois a impossibilidade de tratamento legislativo em comum com outros
temas impede que os parlamentares aprovem a norma sem saber do que
estão tratando. Isso
serve para demonstrar a ilegalidade e a
inconstitucionalidade formal da Medida Provisória n. 852/2018, ao
menos no que diz respeito à flexibilização de parte das três
citadas Unidades de Conservação, e assim certamente deverá ser
declarado pelo Poder Judiciário quando provocado nesse sentido.
1
“(...) dessa forma, está assumindo, constitucionalmente, no
ordenamento jurídico brasileiro, o compromisso de sustentabilidade
ambiental, qual seja, de conciliar a promessa da proteção
ambiental, inclusive de forma diferenciada, com a ordem econômica,
mesmo que baseada nos fundamentos do sistema capitalista de produção
[...]. Cabe ao Direito Constitucional Ambiental, por meio dos seus
instrumentos jurídicos, orientar e promover, via regramento legal,
o processo de transição social e econômica que incorpore, em suas
atuações, a vertente ecológica, em respeito aos limites de
equilíbrio do meio ambiente, propugnando um desenvolvimento baseado
em princípios de sustentabilidade” (PADILHA, Norma Sueli.
Fundamentos
do direito constitucionais do Direito Ambiental brasileiro.
Rio
de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 223).
2
BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e
ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José
Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito
constitucional ambiental brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 104.
3
BENJAMIN. Antônio Herman. O regime
brasileiro de Unidades de Conservação. Revista
da Faculdade de Direito da UFF,
vol. 5. Niterói, 2001, p. 53.
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