Talden
Farias
Autarquia
em regime especial vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), o
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
foi criado pela Medida Provisória 366/2007, que logo depois se
converteria na Lei 11.516/2007. Sua existência está relacionada às
Unidades de Conservação de âmbito federal, pois o seu principal
papel é criar, fomentar, gerir e proteger tais espaços territoriais
ecologicamente protegidos, a despeito de a lei prever outros
objetivos institucionais acessórios1.
O
órgão surgiu a partir de uma divisão do Instituto Nacional do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que até então
era o responsável por todas essas atribuições. Daí a Associação
Nacional dos Servidores do IBAMA (ASIBAMA) ter interposto a Ação
Direta de Inconstitucionalidade 4029 junto ao STF sob a alegação de
que a citada lei não observou o rito nem os pressupostos
constitucionais de urgência e relevância, afora o desrespeito ao
art. 225 da Constituição Federal. Com efeito, é difícil
vislumbrar o caráter urgente e relevante na criação de um órgão
quando existia outro órgão que cumpria a mesma função sem que se
tenha conhecimento de maiores prejuízos por conta disso.
Marina
Silva, então ministra do Governo Lula, além de querer deixar a sua
marca na gestão pública ambiental brasileira, quis prestar uma
homenagem a Chico Mendes, ambientalista acreano de renome
internacional pela sua atuação em defesa da Amazônia e dos
seringueiros. Reverenciado na ONU e ganhador do prêmio Global 500, o
ambientalista ajudou a formular o conceito de Reserva Extrativista
(Resex), que é uma modalidade de UC que prevê o uso
sustentável
dos recursos naturais e a regularização fundiária dos espaços
para populações tradicionais2.
Dentro
do papel de proteger as UC já instituídas, o poder de polícia do
ICMBio ganha destaque como instrumento de controle prévio e
concomitante ou posterior. Enquanto o primeiro se dá por meio de
autorização ou de tomada de ciência, o segundo se manifesta por
meio de sanções administrativas, a exemplo de multa simples,
embargo ou demolição. Tais penalidades se encontram previstas na
Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas
Ambientais)3
e regulamentados no Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre o assunto e
estabelece o processo administrativo ambiental no contexto da União.
Vale frisar que o art. 70 dessa lei classificou as infrações
administrativas ambientais como “toda ação ou omissão que viole
as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e
recuperação do meio ambiente”.
É
sabido que a competência administrativa em matéria ambiental foi
regulamentada pela Lei Complementar 140/2011, que procurou apontar da
maneira mais clara possível a competência da União4.
No entanto, esse diploma legal não cita expressamente nenhum dos
dois órgãos federais integrantes do SISNAMA, qual sejam, o ICMBio e
o IBAMA. Diante disso, concerne ao interessado procurar na legislação
ordinária e nas demais fontes do Direito o critério adequado para a
repartição de competência entre os dois órgãos.
No
que diz respeito à autorização e à ciência ambiental, é preciso
esclarecer que o ICMBio não é órgão responsável pelo
licenciamento ambiental, ao contrário do que acontece com o IBAMA e
com a maioria dos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente.
Entretanto, quando a atividade a ser licenciada puder afetar UC
federal ou sua Zona de Amortecimento (ZA)5
aquele órgão deve necessariamente ser informado, nos termos do que
determina a Lei 9.985/2000 (Lei do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza)6.
Conquanto o conteúdo dessa ciência não esteja regulamentado,
parece razoável a compreensão de que se trata de uma comunicação
acerca da existência do licenciamento e do tipo da atividade
envolvida, incumbindo ao ICMBio solicitar cópia integral do processo
caso ache pertinente.
Na
verdade, o que é levado em conta é a possibilidade ou não de
efetivo impacto ambiental, ainda que este seja meramente potencial, à
área da UC ou de sua ZA. A Resolução 428/2010 do CONAMA
regulamentou esse dispositivo, ao dispor que no caso de Estudo de
Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) será
necessário a autorização do ICMBio, ao passo que nas demais
situações basta a simples ciência7.
Insta
falar que primeira hipótese o órgão poderá influenciar o Termo de
Referência (TR) do próprio estudo ambiental, embora sempre limitado
à sua esfera de ação8.
Contudo, tanto em uma situação quanto em outra a comunicação deve
ocorrer antes da concessão da licença prévia, pois não faz
sentido o órgão tomar conhecimento somente quando a atividade se
encontrar consolidada ou em fase de consolidação, até porque dessa
forma seria mais difícil reverter eventual lesão.
Já
no que diz respeito às sanções administrativas, impende dizer que
somente os funcionários de órgãos ambientais integrantes do
Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) designados para as
atividades de fiscalização poderão lavrar auto de infração
ambiental – a única exceção são os agentes da Capitania dos
Portos, consoante determina o § 1º do art. 70 dessa lei. É
importante destacar isso porque o ICMBio só passou a integrar
efetivamente o SISNAMA a partir da Lei 12.856/2013, que alterou o
inciso IV do art. 6º da Lei 6.938/819,
fato que aconteceu mais de seis anos após a criação da autarquia.
Destarte, todas as sanções administrativas aplicadas até então
eram passíveis de anulação tendo em vista a inobservância do
princípio da legalidade.
Enquanto
o IBAMA tem competência para fiscalizar e impor penalidades
administrativas e fazer licenciamento ambiental, ao ICMBio também
incumbe fiscalizar e impor sanções administrativas – com a
diferença de que essa atribuição deve necessariamente estar
vinculada à proteção das UCs federais. Como a competência
fiscalizatória é comum, estando apenas restrita ao limite da
jurisdição de cada órgão, resta saber a quem cabe impor
penalidades administrativas em tais localidades.
Pois
bem, a Lei Complementar n. 140/2011 estabeleceu que a competência do
ente licenciador deve prevalecer face a dos demais órgãos
ambientais, no tocante à imposição de sanções administrativas,
tendo em vista o princípio da especialidade10.
Com efeito, presume-se que o órgão responsável pelo licenciamento
daquele tipo de atividade tenha mais expertise para afirmar no âmbito
administrativo se houve ou não irregularidade. Então, a ocorrência
ou a permanência da multa e do embargo, por exemplo, no âmbito
administrativo, estão sujeitos à decisão do órgão licenciador.
É
pelo mesmo critério de especialidade que na UC e na sua ZA a
competência prevalente deverá ser a do ICMBio, independente de quem
seja o órgão licenciador. Cuida-se, portanto, de uma modalidade de
competência prevalente, a qual se dá em razão da obrigação de
proteger o espaço territorial ecologicamente protegido previsto no
inciso III do § 1º do art. 225 da Constituição Federal e no art.
1º da Lei 11.516/2007.
Isso
significa que o poder de polícia do IBAMA nessas situações é
supletivo, conforme ordena o parágrafo único do art. 1º da Lei n
11.516/2007. De mais a mais, a própria
Advocacia Geral da União (AGU) reconheceu a prevalência da atuação
do ICMBio nessa seara por meio da Orientação Jurídica Normativa
(OJN) 17/201011
o protagonismo do ICMBio nessa seara. Daí a doutrina entender que
não prevalece apenas o auto de infração, mas o entendimento desse
órgão, inclusive o entendimento de que não houve irregularidade12.
Por
questão de lógica, essa atuação deve predominar também sobre
licenciamentos feitos por outros entes, situação que tende a ser
comum nas ZAs, pois do contrário a autarquia estaria impedida de
cumprir a sua função – que, obviamente, é defender as UCs. Vale
a pena salientar que a regra que excetua as Áreas de Proteção
Ambiental (APAs)13
do critério da dominialidade não altera em nada o papel do ICMBio,
uma vez que a proteção às UCs independe de quem seja o ente
licenciador.
Nessa
ordem de pensamento, a AGU reconheceu na mencionada OJN que o ICMBio
também pode fazer uso do seu poder de polícia diante de atividades
que ameacem a área protegida, mesmo quando estas se localizarem fora
da UC e da própria ZA, desde que seja em prol daquela14.
Não poderia ser diferente, pois de outra forma o órgão poderia não
desempenhar a sua missão à contento, o que desrespeitaria a lei e o
próprio Texto Constitucional. Todavia, é evidente que o órgão
deverá fazer uso da sua discricionariedade técnica para justificar
a decisão de aplicar uma sanção administrativa fora da sua área
de atuação convencional, já que se trata de uma excepcionalidade.
1
Art. 1º. Fica criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade – Instituto Chico Mendes, autarquia federal dotada
de personalidade jurídica de direito público, autonomia
administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio
Ambiente, com a finalidade de: I - executar ações da política
nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às
atribuições federais relativas à proposição, implantação,
gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de
conservação instituídas pela União; II - executar as políticas
relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao
apoio ao extrativismo e às populações tradicionais nas unidades
de conservação de uso sustentável instituídas pela União; III -
fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação
e conservação da biodiversidade e de educação ambiental; IV -
exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das unidades
de conservação instituídas pela União; e V - promover e
executar, em articulação com os demais órgãos e entidades
envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo
nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam
permitidas.
2
A RESEX é classificada como uma das UCs de uso sustentável, que
são aquelas onde é possível compatibilizar a conservação da
natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos
naturais (art. 7º, II, § 2º). A respeito do assunto, a Lei
9.985/2000 dispõe o seguinte: “Art. 18. A Reserva Extrativista é
uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais,
cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente,
na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno
porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a
cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos
recursos naturais da unidade (...)”.
3
Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as
seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º: I -
advertência; II - multa simples; III - multa diária; IV -
apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora,
instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer
natureza utilizados na infração; V - destruição ou inutilização
do produto; VI - suspensão de venda e fabricação do produto; VII
- embargo de obra ou atividade; VIII - demolição de obra; IX -
suspensão parcial ou total de atividades; X – (vetado); XI -
restritiva de direitos (...).
5
Segundo o inciso XVIII do art. 2º dessa lei, a ZA é “o entorno
de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão
sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de
minimizar os impactos negativos sobre a unidade”. Inobstante não
fazer parte da UC, sua finalidade é protegê-la impondo restrições
à ocupação da área circundante para evitar o efeito de borda
consistente na interferência negativa das atividades externas.
6
Art. 36. Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de
significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão
ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental
e respectivo relatório – EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a
apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do
Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo
e no regulamento desta Lei. (...) § 3º Quando o empreendimento
afetar unidade de conservação específica ou sua zona de
amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo
só poderá ser concedido mediante autorização do órgão
responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que
não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma
das beneficiárias da compensação definida neste artigo.
7
Art. 1º O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto
ambiental que possam afetar Unidade de Conservação (UC) específica
ou sua Zona de Amortecimento (ZA), assim considerados pelo órgão
ambiental licenciador, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental
e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), só poderá
ser concedido após autorização do órgão responsável pela
administração da UC ou, no caso das Reservas Particulares de
Patrimônio Natural (RPPN), pelo órgão responsável pela sua
criação.
Art.
5º Nos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos não
sujeitos a EIA/RIMA o órgão ambiental licenciador deverá dar
ciência ao órgão responsável pela administração da UC, quando
o empreendimento: I – puder causar impacto direto em UC; II –
estiver localizado na sua ZA; III – estiver localizado no limite
de até 2 mil metros da UC, cuja ZA não tenha sido estabelecida no
prazo de até 5 anos a partir da data da publicação desta
Resolução. III – estiver localizado no limite de até 2 mil
metros da UC, cuja ZA não tenha sido estabelecida no prazo de até
5 anos a partir da data da publicação da Resolução nº 473, de
11 de dezembro de 2015.
9
Art.
6º. Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito
Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações
instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e
melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do
Meio Ambiente - SISNAMA, assim estruturado: (...) IV - órgãos
executores: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - IBAMA e o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, com a
finalidade de executar e fazer executar a política e as diretrizes
governamentais fixadas para o meio ambiente, de acordo com as
respectivas competências (...).
10
Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou
autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade,
lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo
administrativo para a apuração de infrações à legislação
ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou
autorizada (...). No mesmo sentido os arts. 7º, XIII, 8º, XIII e
9º, XIII.
11
(...) 3. A competência fiscalizatória do IBAMA para a proteção
das Unidades de Conservação Federais e respectivas Zonas de
Amortecimento está condicionada a que a autarquia federal
primariamente competente (ICMBio), por qualquer razão
injustificada, deixe de atuar quando deveria. É possível ainda que
o IBAMA atue em regime de cooperação com o ICMBio, desde que lhe
seja solicitada tal colaboração (ementa da OJN n.
17/2010/PFE-IBAMA/PGF/AGU).
12
Antes da edição da LC 140/11, a AGU entendeu que, “ocorrendo
dupla autuação em face do mesmo infrator e sobre os mesmos fatos,
prevalecerá o auto de infração lavrado em primeiro lugar” (OJN
17/2010/PFE-IBAMA/PGF/AGU). / Entretanto, deve-se atentar ao fato de
que o Ibama somente deverá autuar quando houver omissão do ICMBio,
o que pressupõe uma provocação desse e não pura e simplesmente
um ilícito ambiental dentro de uma UC ou de sua ZA não
fiscalizado. A regra do artigo 17, § 2º, da LC 140/11, por
analogia, pode ajudar a caracterizar a inércia do órgão gestor da
UC. / Caso o ICMBio entenda não haver sanção a ser aplicada, deve
prevalecer o seu entendimento, uma vez que não se poderá falar em
inércia que deflagre a competência supletiva. Não se faz
necessário a analogia com o artigo 17, § 3º, da LC 140/2011 (BIM,
Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2016, p. 77).
13
De acordo com o art. 15 da Lei n. 9.985/2000, “A Área de Proteção
Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de
ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos,
estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade
de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos
básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo
de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos
naturais”. De acordo com a Lei Complementar 140/2011, o ente
instituidor da UC é também o responsável pelo licenciamento
ambiental das atividades ali localizadas ou desenvolvidas (art. 7º,
XIV, d, 8º, XV e 9, XIX, b).
14
(...) 6. Visando evitar conflito de competência entre IBAMA e
ICMBio, quando esta autarquia pretender realizar fiscalização fora
das unidades de conservação e zonas de amortecimento deverá
motivar seu ato baseado em circunstâncias que justifiquem a adoção
da medida como forma de proteção de uma UC. A ausência de
motivação poderá acarretar vício de competência por parte do
ICMBio (ementa da OJN n. 17/2010/PFE-IBAMA/PGF/AGU).
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