INCONSTITUCIONALIDADE
DOS INCENTIVOS FISCAIS CONCEDIDOS ÀS EMPRESAS PETROLÍFERAS: ANÁLISE
DA LEI 13.586/2017
Talden
Farias
Giovanna
de Britto Lyra Moura
Leonardo
Cordeiro Brasil
Em 12 de
dezembro de 2017 a Câmara dos Deputados aprovou, por 208 votos a
284, a Medida Provisória 795/2017, que concede incentivos fiscais às
empresas petrolíferas que exploram as camadas do pré e pós-sal no
território brasileiro. Posteriormente, em 28 de dezembro daquele
ano, o texto da chamada “MP do Trilhão” – assim apelidada pela
grande imprensa por importar em renúncia fiscal supostamente
equivalente a um trilhão de reais ou mais até 2040 – foi
convertido na Lei 13.586/2017, por sanção do Presidente da
República. Há de se ressaltar, entretanto, que nem todo o texto
legal entrou em vigor na data da publicação da Lei, ante à
necessidade de respeito ao princípio da anterioridade de exercício,
consubstanciado no art. 150, III, b
da Carta Magna.
O texto da Lei
13.586/2017 dispõe sobre a concessão de tratamento tributário
diferenciado às empresas que empreendem atividades de exploração e
desenvolvimento no campo do petróleo, do gás natural e de outros
hidrocarbonetos fluidos no território brasileiro. Sua entrada em
vigor importou na alteração de diversos diplomas legais que
dispunham sobre o tratamento tributário dispensado à atividade
econômica em mote. Assim, com a consolidação de um regime
tributário especial, as referidas corporações, inclusive
estrangeiras constituídas sob a modalidade offshore,
passaram
a gozar de diversos benefícios fiscais, dentre os quais, em relação
a tributos decorrentes da aquisição de equipamentos e instrumentos
facilitadores do desenvolvimento da produção (art. 1o,
§5°)1.
Ficou estabelecida, dentre outras providências, a possibilidade de
dedução das importâncias aplicadas nas atividades de exploração
de petróleo e gás natural do montante a ser recolhido a título de
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a aplicação de
alíquota zero para o cálculo de Imposto de Renda retido na fonte
incidente sobre contratos de afretamento ou aluguel de embarcações
marítimas e de prestação de serviços envolvendo a exploração e
produção de petróleo e gás natural, bem como a isenção fiscal
dos tributos federais incidentes sobre os bens destinados às
atividades de exploração das aludidas substâncias.
Decerto não se
desconhece atualmente a utilização de tributos como indutores do
comportamento econômico. A extrafiscalidade tributária, nesse
ponto, deve estar alinhada com os objetivos expressos na Constituição
Federal. Assim, o estabelecimento de políticas fiscais diferenciadas
deve necessariamente passar pelo crivo de compatibilidade com os
preceitos da Ordem Constitucional Econômica Brasileira.
Em uma breve
análise, percebe-se a preocupação do constituinte em erigir a
defesa do meio ambiente como um dos pilares da Ordem Econômica
Nacional, assegurando tratamento diferenciado de acordo com o
potencial poluidor da atividade, em descrição no art. 170, VI da
Lei Maior. Deste modo, a política fiscal não pode ir de encontro
com a efetiva proteção ambiental, sob pena de notória
inconstitucionalidade material.
Passando à
observação da atividade econômica objeto dos benefícios
tributários descritos em lei, percebe-se que indústria petrolífera
é uma das de maior potencial poluidor, sendo possível citar a
contaminação hídrica decorrente do lançamento de efluentes, águas
de lavagem, águas de resfriamento, entre outras substâncias2.
Além disso, as atividades desenvolvidas na planta de exploração de
petróleo liberam, na atmosfera, Gases do Efeito Estufa (GEE), tais
como óxido de enxofre e óxido de nitrogênio, o que contribui
sobremaneira para o aquecimento global, problema este que o Brasil se
comprometeu a combater quando instituiu, em 29 de dezembro de 2009, a
Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei Federal n.
12.187/2009)3
e ao ratificar, em 12 de setembro de 2016, o Acordo de Paris.
Confrontando as
premissas anteriores se percebe a nítida contradição entre a novel
legislação e a proteção ambiental como preceito fundamental da
Ordem Econômica. A própria previsão constitucional estabelece o
compromisso de instituição de tratamento jurídico diferenciado
conforme o impacto ambiental causado pelos processos de elaboração
e prestação de produtos e serviços4,
em clarividente previsão baseada na extrafiscalidade tributária –
deve-se incentivar, através da cobrança de tributos, o
desenvolvimento daquilo que for compatível com a defesa do meio
ambiente, e restringir atividades que o sujeitem à degradação.
Assim, o
mandamento constitucional estabelece a necessidade de diferenciação
do tratamento fornecido pelo Poder Público e pela sociedade em
geral, compatível com o grau de preservação ou poluição
ambientais proporcionadas pela atividade econômica em
desenvolvimento, sendo certo que qualquer dispositivo legal que
conceda benefícios àqueles que empreendam atividades potencialmente
danosas ao meio ambiente não se coaduna com a proteção
constitucional ao meio ambiente, trazida pela Constituição Federal
não só em seu art. 170, mas também no art. 2255.
O direito ao meio ambiente equilibrado, consubstanciado no art. 225
da Constituição Federal, tem ligação direta com o direito à
saúde, sendo ambos direitos fundamentais cujo dever de proteção
incumbe não só ao Poder Público, mas também à coletividade, em
benefício das gerações atuais e futuras – o que se convencionou
chamar de responsabilidade
intergeracional6
ou
solidariedade
planetária7.
Nota-se que a
Lei 13.586/2017 inverte a sistemática de tratamento pelo Estado,
concedendo incentivos fiscais a uma atividade econômica com grande
potencial poluidor, enquanto olvida de empreender um tratamento
adequado às fontes de energia limpa. O patrocínio estatal a uma
atividade como a exploração petrolífera não só sanciona a
perpetuação do sistema energético atual, pautado no consumo de
combustíveis fósseis, bem como desencoraja a promoção e a busca
de utilização de fontes de energia menos degradadoras.
É perceptível
que, mesmo com os avanços tecnológicos ocorridos nas últimas
décadas, o custo de fontes de energia limpa ainda é superior ao das
fontes mais poluentes. Entretanto, com os benefícios fiscais
compreendidos na lei, a diferença entre custos tende a crescer,
desequilibrando ainda mais um mercado que já é tencionado ao uso
crescente de energias poluentes, bem mais baratas sob um ponto de
vista estritamente econômico. O Poder Público não pode intervir na
economia de maneira a resultar ou a acentuar as externalidades8
ou injustiças do mercado, somente podendo agir para mitigá-las ou
extingui-las. Por isso, nas hipóteses de intervenção admitidas na
Constituição, o Estado deve fazê-lo pautado nos princípios
constitucionais da ordem econômica, dentre eles o da defesa do meio
ambiente9
(esse,
inclusive, é o entendimento de decisão do Supremo Tribunal
Federal10).
No caso sob análise, ao conceder incentivos o Poder Público não
somente desequilibra o mercado, como o faz em favor de uma fonte de
energia significativamente poluidora. Essa atuação, conjugada com o
intento cada vez maior de taxar energias renováveis, a exemplo da
PEC 97/201511,
tende a ignorar o preceito constitucional e retroceder os pequenos
avanços obtidos no uso de energias menos poluidores dos últimos
anos.
Ressalta-se que
não é a primeira vez que se discute a incompatibilidade material de
normas cujos ditames vão de encontro ao princípio constitucional da
defesa do meio ambiente. Em 2016 o Decreto 8.950 foi editado para
conceder incentivos fiscais aos agrotóxicos, e foi objeto de Ação
Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Partido Socialismo e
Liberdade – PSOL. A na ADIn 5.553/DF se defende que a noção de
meio ambiente equilibrado é incompatível com o afrouxamento da
produção, comercialização e manejo dos agroquímicos, dada a sua
potencialidade para expor a riscos não somente aqueles que consomem
produtos contaminados por aquelas substâncias, mas também os
trabalhadores que lidam com elas.
Outro ponto que
merece destaque na análise da Lei 13.586/2017 diz respeito ao
princípio da essencialidade tributária, segundo o qual as normas
jurídicas tributárias devem atuar no sentido de garantir uma
subsistência mínima para a sociedade, consubstanciada na
implementação de uma política fiscal diferenciada para aqueles
produtos considerados essenciais à dignidade humana12.
A concessão de benefícios fiscais nos moldes da legislação
analisada
busca facilitar a instalação de plantas petrolíferas, bem como a
aquisição de insumos e bens de produção ligados sobretudo a fase
de prospecção de óleo bruto e seu transporte. A
constitucionalidade e coerência do ponto de vista fiscal dos
subsídios trazidos, muito embora questionável, não é o enfoque do
presente trabalho. No caso, faz-se necessário a compreensão de que
o regime fiscal diferenciado afetará de forma ínfima o preço final
do combustível vendido ao consumidor no final da cadeia produtiva,
se é que chegará a fazê-lo.
Isto porque, os
incentivos destacados se revertem em sua maioria a instalação e
ampliação das atuais instalações petrolíferas, em um esforço
para aumentar a produção que só poderá dar resultados em muitos
anos, haja vista o lapso temporal necessário a ampliar as cadeias
produtivas de modo relevante. Deste modo, mesmo sendo reconhecida a
necessidade atual da população por combustíveis fósseis e seus
derivados, percebe-se que o pacote de incentivos foca no consumidor
final, somente beneficiando cadeias produtivas na sua atividade de
prospecção do óleo bruto. Não vertendo em benefícios à
população, o caráter essencial do produto resta afastado,
desrespeitando o preceito da essencialidade tributária13.
Na verdade,
houve uma tentativa de maquiar o pacote de incentivos para aparentar
estar revestido de essencialidade, quando o benefício tão somente
se estende à grandes empresas. Assim, através da concessão do
tratamento diferenciado que pretende instituir a Lei 13.586/2017,
estar-se diante de uma essencialidade às avessas14.
Cumpre salientar que os incentivos fiscais também colidem
frontalmente com as previsões da Lei 12187/09, instituidora da já
citada PNMC, em maior destaque ao art. 5 º,
VII15.
Em vista disso,
verifica-se que o pacote trazido pela novel legislação está
carreado de vícios, em que constam a afronta às diretrizes da ordem
econômica trazida pela constituição, ofensa aos acordos
internacionais firmados pelo país, contradição em relação à
Política Nacional sobre Mudança do Clima, desvirtuamento de
princípios do Direito Tributário, bem como uma intervenção apta a
acentuar ainda mais o desequilíbrio no mercado energético. Não
bastasse a extensa lista explanada acima, ainda há de salientar que
a promoção de tantas violações constitucionais importará em
altíssima renúncia fiscal, pendente até o ano de 204016.
A Lei 13.586/17 se destaca por conseguir reunir tamanha incoerência
que afronta cumulativamente preceitos constitucionais caros ao
Direito Ambiental, Econômico, Tributário e até mesmo Financeiro.
1
Art.
1o.
(…) § 5º Quanto às máquinas, aos equipamentos e aos
instrumentos facilitadores aplicados nas atividades de
desenvolvimento da produção, a depreciação dedutível, para fins
de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL,
deverá ser realizada de acordo com as taxas publicadas
periodicamente pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, para
cada espécie de bem, em condições normais ou médias.
2
MARIANO,
Jaqueline Barbosa. Impactos ambientais do refino de petróleo.
Dissertação (Mestrado em Ciências em Planejamento Energético) –
Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001, pp. 6-7.
3
Art.
4o.
A Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC visará: I - à
compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a
proteção do sistema climático (…).
4
Art.
170.
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: (…) VI
-
defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus
processos de elaboração e prestação; (…).
5
Art.
225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
6
CMMAD.
Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: FGV, 1988.
7
SARLET,
Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito
constitucional ambiental: estudos sobre a constituição, os
direitos fundamentais e a proteção do ambiente.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 36.
8
Sobre
o conceito de externalidade Fábio Nusdeo afirma o seguinte:
“Imagine-se uma lavanderia que estenda roupa lavada em um gramado
a fim de secá-las ao sol. Após algum tempo, uma usina metalúrgica
instala-se nas vizinhanças e de sua chaminé é expelida fumaça
preta, bojada de partículas de fuligem que se depositarão sobre a
roupa estendida. Haverá aí um custo adicional para a lavanderia,
imposto pela usina. Ou, o que dá na mesma, ela transferiu um custo
que era seu, pois ela é a responsável pela combustão imperfeita
de onde provém a fuligem. (...) O exemplo pode ser levado adiante.
A fumaça preta, certamente, afetará as vias respiratórias dos
moradores locais – clientes ou não da lavanderia –, os quais
terão custos adicionais com a compra de remédios, consultas
médicas ou temporadas para mudança de ar” (NUSDEO, Fábio. Curso
de economia:
introdução ao direito econômico. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997). Isso significa que o processo
produtivo costuma repassar à sociedade determinado ônus a que se
convencionou chamar de externalidades, como se o empresariado
socializasse os prejuízos com a coletividade e mantivesse o viés
capitalista com relação aos lucros. Daí Ricardo Carneiro entender
que a função da legislação ambiental é promover a
internalização e a consequente correção das externalidades
negativas sob o aspecto ambiental causadas pelo desenvolvimento
(Direito
ambiental:
uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
9
De
acordo com o art.
170 da Constituição Federal, são os seguintes os princípios da
ordem econômica: I -
soberania nacional; II
-
propriedade privada; III
-
função social da propriedade; IV
-
livre concorrência; V
-
defesa do consumidor; VI
-
defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus
processos de elaboração e prestação; VII
-
redução das desigualdades regionais e sociais; VIII
-
busca do pleno emprego; IX
-
tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no
País.
10
Segundo
o STF, “(...) A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM
DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO
AO MEIO AMBIENTE. – A incolumidade do meio ambiente não pode ser
comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de
motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver
presente que a atividade econômica, considerada a disciplina
constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros
princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio
ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e
abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente
cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio
ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter
legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela
efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e
os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável
comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar
da população, além de causar graves danos ecológicos ao
patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou
natural” (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal
Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT
VOL-02219-03 PP-00528).
11
A
Procuradora Geral da República, Dra. Raquel Dodge, já se
manifestou pelo conhecimento e pela procedência da ADI por meio do
Parecer 273.198/2017-SFConst/PGR.
13
MARIANO,
Jaqueline Barbosa. Impactos
ambientais do refino de petróleo.
Dissertação (Mestrado em Ciências em Planejamento Energético) –
Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001, pp. 6-7.
14
SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 5.553/DF. Relator Min. Edson Fachin.
Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5011612>.
Acesso em: 06 de jul. 2018.
15
Art.
5o
São diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima: (…)
VII - a utilização de instrumentos financeiros e econômicos para
promover ações de mitigação e adaptação à mudança do clima,
observado o disposto no art. 6o
(…).
16
Art.
7o
As suspensões de tributos previstas nos arts. 5o
e 6o
desta Lei somente se aplicarão aos fatos geradores ocorridos até
31 de dezembro de 2040, sem prejuízo da posterior exigibilidade das
obrigações estabelecidas nos referidos artigos.